sábado, fevereiro 23, 2008

O senhor Abílio da Câmara

Ainda soam os ecos da nova Biblioteca Ferreira de Castro e uma lembrança ocorre-me: a da importância que a Biblioteca Gulbenkian e o senhor seu responsável teve na minha inicial formação cultural.
Já se passaram mais de quarenta anos do dia que franqueei pela primeira vez a porta da Biblioteca Gulbenkian que existiu no gaveto da Rua Ernesto Pinto Basto com a Rua que segue para a Abelheira, ali bem perto dos Bombeiros Voluntários e da Igreja Matriz.
Um corredor de acesso, um silêncio sepulcral e, maravilha das maravilhas, livros, muitos livros. Um senhor, sentado qual professor à secretária, registou os meus dados pessoais numa ficha. De onde era, de quem era. O senhor enunciou as regras. Quantos livros poderia requisitar, qual o tempo máximo do empréstimo e por aí fora.
Burocracia cumprida, eis-me a olhar, deslumbrado, para tantos livros, muito alinhados quais soldados em formação guerreira. Sôfrego, apontei o olhar de estante em estante, de prateleira em prateleira. Que livro escolher ? Este, de lombada castanha, espesso, com um papel sedoso ? Ou aqueloutro, não tão volumoso, sem tantas palavras mas com gravuras, imagens ?
E havia o silêncio, sempre o silêncio, como se ninguém mais ali estivesse. O silêncio em respeito pelos livros e por respeito aqueles que sabiamente os tinham escrito. Sim, porque só pessoas muito inteligentes é que eram capazes de escrever tantas palavras, tantas frases. Mundo novo para mim. O silencia dos lugares sagrados.
O senhor que me recebeu, que escrevinhou os meus singelos dados numa ficha de cartão, abeirou-se de mim. Se eu precisava de ajuda, questionou-me. Respondi que sim. De um jeito muito carinhoso passeou-me ao longo das estantes. Foi-me explicando como estavam arrumados os livros, quais os temas. Até que me fez deter na última estante, dizendo-me: para ti, para a tua idade, são estes os livros que podes escolher. Hábil, fez-me uma breve inquirição. Prosseguiu: talvez te aconselhe este, aquele ou mesmo aqueloutro. Segui o conselho. Procedi à minha primeira requisição. Confesso que não me recordo do nome do livro mas não é assim tão importante.
Dia seguinte, pelas seis da tarde, hora a que a Biblioteca abria, ali estava eu. Para devolver o livro. O senhor, revelando alguma admiração pela minha presença apenas um dia volvido, simpaticamente perguntou-me se não tinha gostado, sim, não era habitual um leitor voltar no dia seguinte. Que já tinha lido o livro, que queria requisitar outro. Porque não ? E lá fui até à prateleira do fundo, ao meu novo mundo encantado e de descoberta.
O senhor da Biblioteca passou a autorizar que em vez de um pudesse eu passar a levar dois. De quando em vez, o senhor sugeria-me este ou aquele livro, simpaticamente negava-me (é o termo) um outro que já tinha em mãos.
Então o senhor dos livros não tem nome ?.
Ah, claro.
O senhor da Biblioteca, naturalmente, tem nome: Abílio Santos. Sim, o sr. Abílio da Câmara.
O sr. Abílio Santos, tinha o seu ofício (de responsabilidade acrescida como Tesoureiro de contas certas) e ao final do dia, noite adentro, tinha a seu cargo a Biblioteca Fixa nº 62 (?) da Gulbenkian (que substituiu a Biblioteca Itinerante, uma carrinha Citroen que de xis em xis dias vinha até Azeméis).
Para além das entradas e saídas em escudos, o sr. Abílio também era entendido em livros, em escritores. Dava um conselho a quém o pedisse, uma orientação. Gostava de ter as opiniões dos leitores aquando da entrega do livro.
(…)
Anos mais tarde, tendo eu por comparsa e companheiro um dos seus filhos , o Zé Santos, beneficiei da sua bondade e ali pudemos estudar muitas tardes , eu e o Zé, antes da abertura da Biblioteca aos utentes.
Mais tarde percebi que aquela permissão era uma (pequena) transgressão às regras. Mas uma transgressão proveitosa para mim pois ali, naquele pequeno mundo silencioso, tinha, por exemplo, algo que não tinha na minha modesta casa: uma mesa e boa luz. Ah! E claro, livros muitos livros.

Bem haja, sr. Abílio.

9 comentários:

  1. Gostei muito deste artigo.

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  2. Carlos como sempre, para nós na casa dos "entas" recordar com uma profunda gratidão as qualidades simples,desinteressadas e humanas do sr Abílio de "Câmara".

    Para ele, meu amigo de sempre,(sou mais novo) aqui deixo expresso os meus sinceros agradecimentos por tudo o que me ajudou bem como a de toda a minha geração de oliveirenses.

    Segundo informação recente, de seu filho Zé "padeiro"informou-me que o sr. Abílio estava doente.

    Votos de rápidas melhoras e volte rápido ao nosso convívio ...na companhia, sua inseparável máquina fotográfia.

    Para ti Carlos mais uma vez os parabens pela qualidade do teu texto.

    Obrigado por te teres lembrado de um homem bom.

    Este sim, merecia pelo que fez que a C.M. e o Presidente de "todos" os Portugueses o homenageassem pelo bem que praticou.

    M.

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  3. É verdade. Um homem da velha guarda que, como tantos outros (alguns ainda no activo) pugnam verdadeiramente pelos interesses e bem estar dos seus concidadãos, desinteressadamente. Ao contrário, hoje, assistimos ao emergir de uma nova geração de "democratas" verdadeiras inteligências únicas que nos têm levado aquilo que hoje sabemos. Até o Presidente da C.M.Lisboa se refere ao caso de Oliveira de Azeméis como "ùnico"...diferente. Pois claro.

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  4. não compreendo como o Helder deixa escrever um artigo destes, não faz muito sangue sobre a CMOA...deve estar doente ou então aTerra está distraída!

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  5. Amigo Carlos, mais uma vez, foi com muito agrado que li o teu artigo. Não vou repetir os elogios, bem merecidos, que por aqui já passaram, relativos à pessoa do sr. Abilio. Só lhe desejo votos de rápidas melhoras e,claro, continuo a aguardar a sua presença no CTA, para uma "quadrada". Julgo que a melhor homenagem que pode ter é a de todos estes comentários. UM GRANDE ABRAÇO.

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  6. ...mas alguém está interessado na sua formação...?! Fale da nulidade que é o seu partido aqui no concelho... sim, porque os comunistas estão a desaparecer por cá...

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  7. Ao anónimo das 10:58 AM quero dizer-lhe que tem toda a razão efectivamente parece que os comunistas estão a desaparecer, mas em contrapartida os burros estão a aumentar, tenha juizo!!!

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  8. Caro Carlos Cunha, revejo-me no seu artigo. Sou dos felizes comtemplados com a outra, a biblioteca itinerante. Recordo perfeitamente as visitas da carrinha Citroen, pela minha aldeia de
    Macinhata, de tempos a tempos.
    A visita da carrinha era dia de festa. Era dos primeiros a chegar e a entrar (a primeira leitora era sempre a mãe do Professor Magalhães, mestre de gerações de macinhatenses como eu), cartões na mão, credenciais feitas, para a escolha dos meus livros para nova temporada.
    Levava o meu cartão e os cartões do meu pai, mãe e todos os que pudesse, para requisitar o maior número de livros que pudesse. Uma pequena distorção da regra, que o zeloso e compreensivo funcionário me permitia, tal era a voragem com que requisitava e lia os livros transportados na "barriga" da carrinha. Recordo-me que havia um número limitado, por cartão.
    Era fantástica, a visita da carrinha. Foi assim, a partir dos meus 9, 10 anos, que me tornei um devorador de livros. Ainda hoje, quando encontro, compro os livros que então li e não podia adquirir. É mais forte que eu. Á custa disso, tenho uma colecção apreciável de vários milhares de livros. Fazem parte de mim, do que sou e da minha relação com a vida e com os outros. E a carrinha foi a semente desta minha exaltante felicidade.
    Obrigado a todos! E ao Carlos Cunha por nos recordar estas memórias perdidas.

    Rui Nelson Dinis

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  9. A visita da carrinha era dia de festa. Era dos primeiros a chegar e a entrar (a primeira leitora era sempre a mãe do Professor Magalhães, mestre de gerações de macinhatenses como eu), cartões na mão, credenciais feitas, para a escolha dos meus livros para nova temporada.(sic)

    ...o teu primo também re acompanhava...o Mário?
    Este é que é um bom leitor....

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